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Ruanda: perdão é um poder dado por Deus

Publicado em: abril 17th, 2023|Categorias: Notícias|Views: 677|

Como a Igreja em Ruanda está ajudando a reintegrar os presos por genocídio contra os tutsis.

O dia 7 de abril foi declarado Dia Internacional de Reflexão sobre o Genocídio de 1994 contra os tutsis em Ruanda. Vinte e nove anos após esses trágicos acontecimentos (7 de abril – 15 de julho de 1994), esses presos, que ainda estão encarcerados, são os que receberam as penas mais pesadas. O P. Théogène NGOBOKA, Diretor da Comissão Justiça e Paz de Cyangugu, está realizando um trabalho pastoral na prisão de Rusizi, que tem 3.850 detentos, dos quais 1.300 são homens encarcerados por genocídio.

Durante sua viagem a Ruanda em dezembro passado, Agnès Sebaux, do escritório de comunicação da ACN, o entrevistou.

Você pode nos lembrar como essas pessoas foram condenadas?

Foram os tribunais populares “Gacaca” que os julgaram. Em Kinyarwanda “Gacaca” significa “grama macia”, ou seja, o lugar onde você se reúne. Originalmente o Gacaca permitia lidar com diferenças entre vizinhos ou na família. Consistia em uma assembleia de aldeia presidida por anciãos, onde todos podiam pedir para falar. Assim esses tribunais foram revividos para acelerar os casos necessários de algumas centenas de milhares de pessoas acusadas de participar do genocídio.

Os homens que continuam presos, 29 anos depois, são os que não quiseram confessar e reconhecer os fatos incriminadores. Mas há também os que praticaram crimes em várias áreas e cujas penas foram combinadas ou, ainda, os que foram os pregadores do genocídio e que deram as ordens.

Você é o capelão desta prisão. Em que consiste a sua missão?

Eu tenho um direito permanente de visita. Dessa forma, com os voluntários que trabalham na Comissão de Justiça e Paz, ajudo os detentos que serão liberados em breve a se prepararem para a soltura. O fato é que você pode ter cumprido sua pena perante a lei, mas a sociedade continua a julgá-lo. Explico aos internos que é importante e necessário se reconciliar com a comunidade.

Como você os ajuda?

É realmente um processo de acompanhamento dos presos, mas também da comunidade para a qual eles vão retornar e se estabelecer para juntos, chegarem à reconciliação. Em primeiro lugar, preparamos os presos e os sensibilizamos para a necessidade de pedir perdão. “A comunidade ainda tem algo contra você. Você está preparado para reconhecer suas ações e pedir perdão à comunidade? Estamos nos comprometendo a servir como intermediários entre você e os sobreviventes.” Se estiverem prontos para esta etapa, escrevem uma carta a todas as pessoas a quem desejam pedir perdão. Eles se comprometem a mudar seu comportamento e expressar seu desejo de viver em harmonia com a comunidade. A administração da prisão assina essas cartas para autenticá-las.

Essas cartas são então repassadas às famílias sobreviventes pelos padres ou pelos voluntários das Comissões de Justiça e Paz das paróquias interessadas. Estes se comprometem a explicar o passo que o preso deu. Um diálogo começa, a fim de verificar a validade das declarações. Então, tem cartas que vêm com todas as informações, outras são parciais… as vítimas mencionam outros fatos. A comissão se compromete a anotar todas essas informações faltantes e devolvê-las ao preso. Servimos como intermediários para estabelecer a verdade.

E uma vez que a verdade é estabelecida, o que acontece?

Se o sobrevivente confirmar que a carta está realmente completa, sugerimos que vá ao presídio para conversar com o preso. Então, um dia por mês, a gente organiza essas visitas com o serviço social do presídio. Ainda somos mediadores e estamos presentes nessas reuniões. Facilitamos a conversa. As emoções são poderosas.

Então, se o perdão é dado e aceito, devemos estendê-lo aos membros da família. O perdão deve se referir à família, tanto à família do sobrevivente quanto a do preso.

Da mesma forma, trabalhamos no coração da comunidade. Por um lado, organizamos sessões com os sobreviventes e, por outro, com as famílias dos presos. Então nós os reunimos. A maioria dessas pessoas são crentes, e a fé desempenha um papel fundamental no processo de perdão. Todos os nossos encontros acontecem em torno da Palavra de Deus onde encontramos modelos de perdão. Rezamos e discutimos os textos que mostram o quanto o perdão liberta. Convidamos também as pessoas que já passaram por este processo de reconciliação a darem testemunho. Isso encoraja os outros. Assim, quando os presos saem, eles chegam a uma comunidade já preparada.

É um longo processo…

Sim, é por isso que começamos três anos antes da saída deles. E, de fato, depois que eles são soltos, não é o fim. Nos comprometemos a apoiar eles por pelo menos seis meses para permitir que os prisioneiros e as vítimas superem seu medo. Organizamos encontros em torno da Palavra de Deus, projetos comunitários que permitem que eles trabalhem juntos em um campo ou em um canteiro de obras… Pedimos que eles se visitem. A reconciliação não é automática. A confiança deve ser construída. É uma longa jornada.

Também organizamos peregrinações a Kibeho (local de uma aparição da Virgem Maria) onde convidamos pequenos grupos de diferentes paróquias. Cada um fala sobre sua jornada. Nós discutimos. Todos são apoiados em sua jornada de perdão.

Ao fim de seis meses, a Comissão de Justiça e Paz tenta avaliar o estado da reconciliação. Os voluntários que os acompanham opinam sobre o processo e sobre as atividades comuns realizadas. Se o processo foi bem feito, a igreja organiza um dia oficial de unidade e reconciliação. Os presos são recebidos na igreja e oficialmente pedem perdão. Eles confessam publicamente o que fizeram e pedem perdão. As vítimas também oferecem publicamente seu perdão.

Quais as dificuldades que você encontra?

O processo exige esforços enormes. Afinal as feridas ainda são sensíveis, mesmo 29 anos depois. Algumas pessoas não querem abrir essas feridas quando estão começando a cicatrizar. Para que essa reconciliação tenha chance de dar certo, a vítima deve estar convencida da sinceridade do pedido de perdão e de que todos os atos cometidos foram revelados. Mas algumas vítimas ainda não conseguem lamentar seus entes queridos porque não sabem onde estão seus corpos. Dessa forma eles estão esperando que seu algoz descubra a cena de seus crimes.

Para o ex-prisioneiro, também é muito difícil. Alguns nos testemunham que “o lado de fora é pior do que a prisão: minha esposa fez uma nova vida com outro homem e tenho medo de encontrar membros da família que matei. Como faço para ir à igreja onde cometi assassinatos?”

Outra dificuldade é o fato do restante da família não querer estender o perdão. Antes de tudo é preciso respeitar o ritmo de cada um e acompanhá-los nessa jornada.

Alguns presos não reconhecem os crimes pelos quais foram acusados. Há presunção de inocência?

Os tribunais de Gacaca ajudaram muito a condenar a maioria das pessoas que participaram do genocídio, mas os tribunais populares também tiveram seus limites. Quando não havia provas suficientes, mesmo que você se declarasse inocente, às vezes ainda era condenado. Em nosso trabalho encontramos alguns prisioneiros que foram injustamente acusados e presos. Por exemplo, alguns prisioneiros admitem ter pilhado, mas não matado. Alguns sobreviventes, no calor da emoção ou do desejo de vingança, fizeram falsas acusações. Mas uma vez que a sentença foi pronunciada, é difícil voltar atrás.

Você acompanhou alguns desses prisioneiros para se preparar para sua libertação?

Sim, aconteceu. Expliquei para eles que a reconciliação se baseia na verdade, no pedido e na aceitação do perdão. Mas cada caso é individual. Então temos que ouvir, discernir e tentar descobrir a verdade, o que realmente aconteceu.

Você pode me contar sobre uma dessas reconciliações?

Sim, por exemplo, o de Herman H. e Gaston N. de Mibirizi. Herman foi o responsável pela cela durante o genocídio perpetrado contra os tutsis e matou muita gente. Tendo reconhecido perante o tribunal de Gacaca sua significativa responsabilidade no genocídio, ele teve sua sentença inicial de morte comutada para 25 anos de prisão. Isto é o que ele testemunhou durante o dia oficial de unidade e reconciliação:

“Quando saí, não tinha mais a sensação de estar vivo. Eu estava perturbado. Não pude ir à missa nem ao mercado. Eu simplesmente queria ficar trancado em minha casa. Se eu tivesse escolha, teria preferido voltar para a prisão em vez de viver assim. Pe. Clément, meu pároco, fez saber que desejava conhecer os presos libertados e seus familiares. Ele veio à minha casa. Comecei com ele esse processo que não foi fácil, mas ele ficou ao meu lado até que eu pudesse conhecer Gaston N, o chefe da grande família que eu havia exterminado. Eu pedi seu perdão e ele me perdoou”.

De sua parte, Gaston N. não esqueceu seu calvário e todas as torturas de Herman H. Afinal ele ainda tem algumas cicatrizes. Por muito tempo, ele esteve em um lugar de ódio misturado com trauma. É graças ao acompanhamento dos facilitadores psicossociais da Comissão de Justiça e Paz de Mbirizi que conseguiu empreender o processo de reconciliação. Ele disse que seu coração foi verdadeiramente libertado e que perdoou Herman sinceramente. Então agora eles vivem bem. Não há mais preconceito ou desconfiança entre eles.

Afinal, você acha que o processo de reconciliação seria possível sem a ajuda de Deus?

Não, o perdão é um milagre, uma dádiva de Deus… quando você ouve falar de todas as atrocidades cometidas… o perdão é um poder dado por Deus.

Em 2023, a comemoração do genocídio de Ruanda coincide com a celebração da Sexta-feira Santa. Isso é um sinal para você?

Sim certamente! É um sinal revelador de que Deus está conosco nesses momentos dolorosos. Mas,durante o genocídio, muitos ruandeses que eram crentes fortes perguntaram onde estava Deus. Acima de tudo, havia um conhecido ditado ruandês que dizia: “Deus passa o dia em outros países e sempre volta para passar a noite em Ruanda!” Muitos ainda se questionam sobre o silêncio de Deus diante do seu sofrimento. A resposta a esta pergunta encontra-se no mistério que celebramos na Sexta-Feira Santa: Deus esteve com os seus filhos sofredores, seus justos perseguidos, sinal da vitória da vida sobre a morte, sinal da esperança de um futuro melhor em Jesus Cristo.

Durante o ano de 2021, na Diocese de Cyangugu, 154 presos foram acompanhados e reunidos com 98 famílias sobreviventes do genocídio. A ACN apoia o trabalho da Comissão Nacional de Justiça e Paz no financiamento de um programa de formação para 120 sacerdotes e religiosos e religiosas em três dioceses de Ruanda para capacitá-los a compreender o trauma, as técnicas de escuta ativa e o acompanhamento psicoespiritual para a resiliência comunitária.

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