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Sudão do Sul: “Rezo para que todos sejam um”

Publicado em: dezembro 3rd, 2024|Categorias: Notícias|Views: 316|

Kinga Schierstaedt, coordenadora de projetos da ACN na África, viajou ao Sudão do Sul, um país sem saída para o mar localizado no país. Fazendo fronteira com a República do Sudão, seu vizinho maior ao norte, o Sudão do Sul tem sofrido terrivelmente com conflitos e guerras civis nos últimos anos. Após retornar de sua viagem, Schierstaedt falou sobre a situação atual no país e o papel desempenhado pela Igreja.

O Sudão do Sul só conquistou independência do Sudão em 2011 e tem enfrentado muitos desafios devido à guerra. Muitas pessoas conhecem o Sudão do Sul como o país mais jovem do mundo. Você pode nos contar mais sobre o país e sua história recente?

O Sudão do Sul é um país de extremos e possui muitos recordes, nem todos positivos. Houve duas guerras entre o norte e o sul no antigo Sudão: a primeira começou em 1955 e a segunda em 1983. Após o Sudão do Sul finalmente conquistar a independência em 2011, havia grande esperança de um novo começo, mas uma guerra civil eclodiu em 2013, durando até um acordo de paz em 2018.

Todos esses conflitos resultaram em milhões de mortos e deslocados, além de inúmeras pessoas traumatizadas.

Esse conflito deve ter afetado seriamente o desenvolvimento do país, não é?

Certamente. Milhões de crianças não puderam frequentar a escola adequadamente, pois foram deslocadas de suas casas. Isso explica por que o Sudão do Sul tem um dos menores índices de alfabetização de adultos no mundo, com apenas 35% da população adulta capaz de ler. Mais impressionante ainda, o país ocupa a penúltima posição no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da ONU, apesar de ser rico em recursos naturais como petróleo e ouro.

Como todo esse tumulto e conflito afetaram a Igreja Católica no Sudão do Sul?

Esses conflitos certamente impactaram negativamente o desenvolvimento da Igreja e sua capacidade de ministrar ao povo. Por exemplo, a Diocese de Yei, no sul do país, sofreu terrivelmente durante as guerras. Segundo o bispo local, cerca de 60% da população da diocese foi deslocada, o que deixou a infraestrutura local subdesenvolvida. O bispo não tem uma cúria adequada, apenas uma cabana e dois computadores. Há nove paróquias em funcionamento, mas algumas não possuem igrejas estruturadas, já que muitas foram destruídas na guerra.

Além disso, a diocese não tem hospitais ou escolas, e conta apenas com uma clínica. Eles têm uma ambulância, mas não podem usá-la. A ambulância tem um buraco de bala na janela, resultado de um ataque que matou uma religiosa eslovaca durante a guerra. O veículo foi apreendido para investigação policial e, por isso, está inutilizável. Os medicamentos disponíveis são doações, muitos com prescrições em francês ou alemão, idiomas que ninguém na clínica consegue ler, tornando os remédios quase inúteis. Apesar desses desafios, as pessoas estão começando a retornar para suas casas, o que traz uma nova esperança. Nesse contexto, elas olham para a Igreja como uma fonte de esperança.

Pelo que você disse, parece que o povo está muito próximo da Igreja. Como você descreveria a fé no Sudão do Sul?

O cristianismo é uma parte importante da identidade do povo sul-sudanês. Essa é uma das características que distinguem o Sudão do Sul do Sudão, predominantemente muçulmano, do norte. Os sul-sudaneses têm uma longa história de resistência à islamização imposta pelo norte.

O Papa tem contribuído para a paz no país. Por exemplo, em 2019, em Roma, ele beijou os pés do presidente e do vice-presidente do Sudão do Sul, que eram rivais políticos, pedindo que fizessem as pazes. Esse gesto teve um impacto enorme. A visita do Papa Francisco ao Sudão do Sul em 2023 também foi muito significativa. O lema da visita foi "Rezo para que todos sejam um", uma mensagem de grande relevância para um país marcado por divisões tribais e guerra civil.

Você mencionou as divisões tribais no Sudão do Sul. O tribalismo foi um dos fatores que levaram à recente guerra civil. Isso é algo com que a Igreja também precisa lidar?

O tribalismo afeta todos os aspectos da sociedade sul-sudanesa, incluindo a Igreja. Alguém no país me disse: "O sangue da nossa tribo é mais espesso que a água do nosso batismo." Em muitos casos, práticas tribais estão profundamente enraizadas na cultura. Por exemplo, algumas tribos praticam a poligamia, com homens casando-se com várias mulheres, algumas muito jovens. Isso pode levar a resultados trágicos.

Durante nossa visita à Diocese de Rumbek, um bebê gravemente doente foi levado para ser batizado. Sua mãe, casada com um homem muito mais velho e já com várias esposas, ficou tão infeliz que perdeu a vontade de viver e parou de se alimentar, mesmo grávida. Por isso, o bebê nasceu muito debilitado e morreu duas horas após ser batizado. Embora alguns defendam que essas práticas fazem parte da cultura, a Igreja busca abordar essa questão. Afinal tais tradições têm um impacto muito negativo, especialmente para as mulheres, e vão contra os ensinamentos da Igreja.

Quais são outros desafios enfrentados pela Igreja no país?

Um dos desafios notáveis é o pequeno número de vocações locais em comparação com outras partes da África. Isso se deve a diversos fatores, como os baixos níveis de educação e as interrupções causadas pela guerra contínua. Além disso, o fato de as meninas se casarem muito jovens impede que considerem a possibilidade de seguir uma vocação religiosa, explicando o número reduzido de religiosas sul-sudanesas. Essa falta de vocações aumenta a carga de trabalho dos poucos padres existentes, que servem em condições extremamente difíceis e estão exaustos.

Outro problema é a questão do transporte e da comunicação. Muitos padres estão isolados, não apenas pela distância, mas também pelas más condições das estradas. Durante nossa visita, por exemplo, tivemos dois pneus furados em uma única viagem!

Em quais áreas a ACN está concentrando seus esforços para ajudar?

Há uma grande necessidade de projetos de infraestrutura, como a construção de novas igrejas e a renovação das existentes. Contudo, acreditamos que o investimento nas pessoas e no clero é mais urgente no momento. Há muitas pessoas traumatizadas e refugiados no país. Além disso, há muita agressividade, mágoa e tensões resultantes dos conflitos que precisam ser trabalhadas. Por isso, estamos focando em programas de formação e cura de traumas. Também estamos priorizando o apoio aos padres, oferecendo retiros espirituais e períodos sabáticos, já que muitos estão próximos do esgotamento.

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