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Como evitar a guerra religiosa

Publicado em: abril 17th, 2023|Categorias: Notícias|Views: 1577|

O Arcebispo de Bangui, capital da República Centro-Africana (RCA), visitou recentemente a sede ACN na Alemanha. Nesta entrevista, o cardeal Dieudonné Nzapalainga recorda a ação decisiva dos líderes religiosos para evitar que o conflito no país se transforme em uma guerra religiosa.

Nos conte um pouco sobre o que seu país está vivendo atualmente. Por que não há paz?

Em 2020, o presidente Faustin-Archange Touadéra foi reeleito, em circunstâncias difíceis. O então ex-presidente tinha tropas à sua disposição e ameaçava voltar ao poder por meio de um golpe militar. Faustin-Archange Touadéra forjou alianças com Ruanda e com a Rússia para expulsar os rebeldes do país. O grupo Wagner, em particular, se envolveu na luta contra os rebeldes e os expulsou das grandes cidades.

No entanto, os rebeldes continuam presentes nos assentamentos menores, então as pessoas não podem viajar livremente por causa da insegurança. Afinal eles temem os bloqueios de estradas e os dispositivos explosivos. Um missionário italiano, P. Norberto Pozzi, foi recentemente atingido por uma mina que foi detonada pelo seu carro e ficou gravemente ferido, embora obviamente nada tivesse a ver com o conflito político em curso. Eles tiveram que amputar o pé dele.

Por que tem sido tão difícil acabar com a violência em seu país?

Nosso país é maior que a França e é difícil para uma administração fraca controlar. Não há, realmente, uma linha de frente. As milícias hostis ao governo estão espalhadas pelo país e são difíceis de localizar. Os motivos políticos desses rebeldes não são claros, mas temo que seja mais um caso de pessoas que se juntaram às milícias e não podem abandonar agora porque não têm outro meio de ganhar a vida. Os que pertencem a grupos mais estruturados tomam posse das terras que invadem. Naturalmente, eles são mais ativos em locais onde há mais riquezas, como madeiras e minerais valiosos. O estado está tentando impor o estado de direito e, enquanto isso, todos os nossos cidadãos estão sofrendo.

Nos primeiros dias da guerra na RCA, ouvíamos sobre a milícia Séléka, que era majoritariamente muçulmana, atacando cristãos. Existe uma dimensão religiosa no conflito?

Nos juntamos a outros líderes religiosos do país, a pastores e imãs, e proclamamos em alto e bom som que não se trata de um conflito religioso. Afinal sempre estivemos unidos contra o risco de isso se transformar em uma guerra confessional, e essa posição deu frutos. Como líderes religiosos, somos como pais em uma família, devemos dar o exemplo. Nossos cidadãos podem ver que continuamos nos dando bem e que sempre continuamos a dizer que as divisões em nosso país eram impostas de fora.

Além disso nossos esforços na construção da paz foram facilitados pelo fato de que na sociedade centro-africana muitas famílias são misturadas. Afinal todo mundo tem um primo, um tio ou alguém próximo que pertence a outra religião, mas ainda faz parte da mesma árvore genealógica. Assistimos a belos momentos de fraternidade em Bangui, nos quais jovens muçulmanos ajudaram a reconstruir igrejas e jovens cristãos ajudaram a reconstruir mesquitas. Por isso, no final das contas, embora esta crise tenha sido terrível, ela teve o efeito positivo de promover a unidade entre nós.

Mas numa época em que vimos tantos países à margem da região do Sahel, como Mali, Burkina Faso, Nigéria e Níger, se tornarem zonas de guerra entre cristãos e muçulmanos… Você teme um efeito de contágio? Como evitar que aconteça?

Nossa experiência mostra que dá para evitar os conflitos religiosos. Há exemplos opostos, como no Senegal, onde os muçulmanos são maioria e não há conflito interreligioso. Até elegeram presidentes cristãos. Acho que os líderes religiosos têm um papel muito importante para evitar a divisão religiosa.

Ainda que o país viva uma terrível crise, a Igreja mostra uma extraordinária vitalidade, que se manifesta, também, no número de vocações ao sacerdócio. Você vê um paradoxo aqui?

Acho que este período de crise beneficia o crescimento da Igreja. Para os nossos compatriotas mais pobres, que vivem na dor, na insegurança e na pobreza, Deus é verdadeiramente a rocha na qual se podem apoiar. Durante a agitação, quando tantas pessoas foram deslocadas, muitas encontraram refúgio em nossas igrejas, e algumas crianças até nasceram lá.

A Igreja Católica na República Centro-Africana tenta, agora, chegar às periferias, como a diocese de Bossangoa, no Nordeste, assolada por grupos armados. Temos uma escola lá e estamos preparando jovens sacerdotes, tanto em termos humanos quanto espirituais, para ir para esta zona de perigo. Convidamos também os casais católicos leigos a irem a esses lugares onde ninguém mais quer ir.

Isso não é muito arriscado?

As pessoas que vivem nestas áreas difíceis precisam dos sacramentos e do testemunho fraterno da Igreja. De fato isto é muito importante. Quando fui nomeado cardeal, me disseram, e com razão, que eu deveria representar todo o país, e não apenas Bangui. É por isso que vou a lugares onde representantes de alto escalão do governo não podem ir. Claro que isto implica riscos que tento evitar. Um deles é o estado das nossas estradas. Algumas não foram reparadas desde a independência. Recentemente meu carro capotou em uma delas. Mas nossa vida é uma coisa pequena quando comparada com as expectativas das pessoas que clamam por apoio espiritual.

O Papa Francisco visitou o país em 2015. Isso teve algum efeito duradouro?

Sim, fez, e fortaleceu a coesão interreligiosa. Afinal foi uma visita de alto risco, mas o Papa foi acolhido por todo o povo. Durante a missa que celebrou no estádio estavam católicos, protestantes e muçulmanos. Então um deles até me disse que o Papa veio libertá-los. Libertar os muçulmanos! Afinal ele pertencia a uma comunidade que estava trancada em um bairro chamado "Quilômetro 5" e que vivia com medo de represálias cristãs.

Em 2015 celebrávamos o Ano da Misericórdia, e o Papa abriu aqui uma Porta Santa, um gesto que ficará para sempre na história do país. Afinal estas Portas Santas são geralmente limitadas a Roma. Esta é uma porta de vida e de perdão, que representa a visita do Sucessor de Pedro ao nosso país.

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