Editorial publicado no jornal italiano “Il Sole 24 Ore” no domingo de 31 de agosto, escrito por dom Bruno Forte, arcebispo de Chieti-Vasto

Na conversa com os jornalistas durante o voo de volta de Seul para Roma, após a terceira viagem internacional do seu pontificado, Francisco falou da situação no Iraque e da necessidade de parar o injusto agressor mediante um esforço multilateral, promovido e garantido pela ONU. Neste contexto, o papa denunciou a “crueldade selvagem” do armamento de guerra não convencional e da tortura, empregados pelos jihadistas, e observou dolorosamente: “Estamos na Terceira Guerra Mundial, realizada por partes”.

A afirmação é tão grave quanto certa e ressalta o peso que as forças fundamentalistas islâmicas estão exercendo na desestabilização da ordem internacional, ao promoverem um extenso plano de ação para combater os seus próprios irmãos muçulmanos, o cristianismo e as outras religiões e visões de mundo a que se contrapõem. No entanto, é o Ocidente que esses novos bárbaros identificam como o principal inimigo a ser abatido. Do Iraque à Síria, da Líbia à Somália, a “guerra santa” parece lançar a sua ofensiva de modo amplo e sincronizado, com miras expansionistas escancaradas. Minimizar a gravidade desta situação seria próprio de irresponsáveis. Reduzir os problemas a simples conflitos locais é tentar negar a realidade.

A verdade é que o novo inimigo da humanidade é mais do que nunca o fundamentalismo, que não deve ser confundido de maneira nenhuma com as formas do Islã autêntico e com as aspirações de paz e justiça que permeiam o coração e o comprometimento de muitos muçulmanos. Uma posição inter-religiosa de denúncia firme e sem resquícios de fundamentalismo é mais necessária do que nunca. Para promovê-la e instá-la, é oportuno refletir sobre os caracteres absolutamente desumanos e perversos das ideologias fundamentalistas.

Tento fazê-lo a partir de uma declaração do Evangelho em que Jesus reprova a hipocrisia dos escribas e dos fariseus, baseada em externalidades e transgressora das “prescrições mais importantes da lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade” (Mt 23,23). Estas são as três ideias-chave que o fundamentalismo distorce até transformar no seu oposto; ideias em torno às quais devemos convergir a fim de nos opormos à barbárie e à violência cega mediante um verdadeiro compromisso no serviço da paz para todos.

Em primeiro lugar, a justiça: na acepção positiva, ela consiste no respeito e na promoção dos direitos de cada um, ou seja, no reconhecimento da máxima “a cada um o que é seu” (“unicuique suum”, em latim). Já na deformação ideológica, a justiça é transformada na imposição da lei do mais forte, identificada como a única norma e medida do bem e do mal, em nome de um fim que pode justificar quaisquer meios. Esse fim seria a destruição do que é diferente, com a imposição de uma única visão de mundo tida por verdadeira e cuja consecução é confiada à força das armas. A “jihad”, que, no sentido original, é o compromisso com o bem e a luta contra o mal em si mesmos e na história, se transforma na guerra contra o outro, que deve ser destruído a todo custo.

A identificação entre justiça e violência em nome da verdade e da soberania divinas serve como a terrível motivação de todo tipo de abuso e de insulto à dignidade da pessoa humana, imagem de Deus. Assim, esta lógica se revela perversa, ofendendo exatamente Aquele a quem pretenderia dar glória: o Deus Senhor e Pai de todos, o Criador do homem, que certamente não pode se alegrar com a ofensa infligida à Sua criatura; Ele próprio vem a ser vilipendiado por aqueles que ferem de qualquer forma o ser humano criado à Sua imagem e semelhança. Toda violência em nome de Deus é blasfêmia e incredulidade! Nenhuma fé religiosa autêntica pode motivar a violação dos direitos inalienáveis da pessoa humana, a começar pelo direito à vida e à proteção da sua liberdade de expressão e de realização.

Entende-se com isto o quanto a ideia de misericórdia é fundamental para complementar a de justiça: na acepção bíblica, a palavra “rahamim”, que transmite a ideia de misericórdia, evoca o ventre materno, o útero da vida, de onde todos nascemos. Ser misericordioso significa reconhecer essa comum e original pertença a uma mesma origem e um mesmo destino. A misericórdia remete à mesma fonte materna e paterna da qual viemos todos. O Deus misericordioso da Bíblia, o Pai de Jesus, e também o Deus misericordioso e compassivo mencionado no alcorão são o mesmo Deus de traços paternos e maternos.

O fundamentalista, sentindo-se dono da imagem da divindade, aplica a misericórdia só a si mesmo e aos seus companheiros, ou no máximo àqueles que lhe são afins por interesse: de categoria universal, fundamento da paz entre todos, a misericórdia é transformada em ciosa apropriação, em autojustificativa e em tolerância do mal provocado em prol da própria causa, tornando-se ofensa ao amor universal do Deus único. O acesso à misericórdia passa pela decidida rejeição de toda falsificação da misericórdia. Experimenta-se a misericórdia quando se sabe acolher e perdoar o outro, mesmo o inimigo, em nome de um amor maior: “Sede misericordiosos, como também o vosso Pai é misericordioso” (Lc 27,36).

Finalmente, a fidelidade é o valor que humaniza e que salva quando se concretiza no compromisso de manter a justa aliança de amor e de vida estabelecida com Deus e com os outros, na experiência da misericórdia recebida e dada. Quando o fundamentalismo reduz a fidelidade ao princípio de uma coerência infame com a justificativa da violência em nome do fim, ou seja, quando a fidelidade se torna integrismo ou imposição cega da própria verdade, não resta mais nada do original sentido da palavra, que, na Bíblia, é sinônimo de verdade (‘emet), de estabilidade no bem e de adesão obediente à lei moral inscrita nas tábuas dos Dez Mandamentos e no coração de toda pessoa. Fiel ao Deus vivo é aquele que pratica a Sua misericórdia e se deixa moldar pelo Seu amor.

Ofende o nome do Altíssimo quem faz da alegada fidelidade ao divino a justificativa da violência e do abuso de poder sobre os outros. Justiça, misericórdia e fidelidade são as três ideias-chave sobre as quais se constrói a honesta convivência humana de acordo com o plano do Criador: qualquer abuso dessas ideias para servir aos interesses da própria causa, tornando-a falsificação ideológica, é ofensiva à soberania de Deus e à dignidade da criatura feita à imagem dele. Esclarecer estes pontos é dever de todos os professores e testemunhas das crenças religiosas autênticas: a sua mobilização conjunta, portanto, é premente para isolar e secar na raiz toda a barbárie fundamentalista, que tenta se justificar em nome de um Deus reduzido a ídolo e utilizado para servir às próprias ilusões aberrantes de onipotência.

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